Viver não custa, o que custa é morrer. Porque passamos demasiado tempo dentro de casa, e a nossa casa é pequenina, e porque desde o confinamento a liberdade de sair para um passeio deixou de ser natural e espontânea - estamos a aprender a voltar a tê-la, verdadeiramente livre, como convém - sempre que encontro uma das vizinhas, pomos a conversa em dia. A conversa é, por regra, a vida da vizinhança. Por exemplo, soubemos há pouco que uma das nossas vizinhas está a morrer de cancro, porque - soubemos - esperou dois anos por uma consulta da especialidade. Entretanto, foi operada, sem grande sucesso - a coisa está tão espalhada que tem pouco tempo de vida -, mas encontra-se a recuperar numa casa de repouso/reabilitação, que diz - soubemos - ser o inferno.
Ontem, Daniel de Oliveira sublinhava , no Facebook, que num país pobre como o nosso é preciso que o Estado trate dos velhos, à semelhança do que faz com os jovens por meio da Escola. Eu não sabia que o Estado incumbia a Escola de tratar dos jovens. Quem é que na Escola trata dos jovens? Os professores? Os funcionários? As direcções? A minha maior incompatibilidade com o ensino radica nesta pressuposição e na sua aceitação tácita pela sociedade. Alguém foi ao Facebook de Daniel Oliveira dizer o que eu poderia ter dito: muitos filhos não tratam dos pais, não porque não podem, mas porque não querem. (Eu conheço muitos pais que agradecem que a Escola lhes trate dos filhos não porque eles não podem, mas porque não querem.) Isto não tem a ver com questões laborais - e sim, o mercado de trabalho não verá com bons olhos funcionários que metam baixa para tratar dos pais, como fez a minha mãe há vinte anos -, nem com a emancipação da mulher - nada dita que seja a mulher a fazê-lo, não vejo por que não pode ser o homem...
Muitos filhos não tratam dos pais porque simplesmente não querem a) dispensar tempo para isso - são os que argumentam com o género e/ou a carreira; b) dispensar dinheiro para contratar um cuidador - mesmo que os pais tenham esse dinheiro/especialmente quando os pais têm dinheiro; c) assistir ao triste progresso da decrepitude - quando há tanto para ver, fazer, consumir. Antes de mais, temos de tratar esta falta de empatia que faz com que o final da vida seja visto como uma oportunidade de descarte. Ir para um lar hoje é ir para não mais voltar. Qualquer semelhança com campos de extermínio não é mera coincidência.
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