sábado, 27 de março de 2021

O erro humano

Há meia-dúzia de anos ganhei um medo terrível de voar. Sei que muitas pessoas se queixam do mesmo mal, algumas ao ponto de limitarem a sua vida de forma, para mim, impensável. Conheço uma pessoa que só vai de férias para locais onde se possa chegar de carro. É claro que esta pessoa não nasceu, como eu, numa ilha, onde tem parte da família. É claro que esta pessoa nunca andou de avião. O medo dela é uma construção da sua imaginação. Ela não passou metade da vida, como eu, a andar de avião sem medo e, portanto, escapou ao trauma do medo experimentado realmente, do medo vivido. Conheço outra pessoa que, para não deixar de ir à sua vida, recorre a um sonífero cujos efeitos se estendem por toda a duração da viagem. Confesso que esta alternativa é-me cada vez mais apelativa. No entanto, quando me era permitido ver os meus, eu voava como se tivesse menos vinte anos e não me assistisse o medo. E estava tudo bem até ao momento de me sentar e apertar o cinto. Depois era o costume: as mãos que suam, as palpitações, o tempo que não passa, a minha vida em retrospectiva, o filme daquela vez, um horror. Há vinte anos tive o azar de fazer uma viagem para a Madeira que me estragou todas as viagens que viria a fazer depois. Costumo dizer que passaram para as mãos de uma pessoa inexperiente cerca de trezentas vidas. Digo inexperiente, porque, sendo madeirense, dizer que naquela noite no cockpit não havia ninguém em condições de voar lembra uma tragédia de má memória. Aterrar na Madeira não é fácil. O aeroporto está numa localização difícil e há uma série de ventos cruzados que dificulta a chegada. No entanto, durante mais de dez anos as minhas viagens contaram com a famigerada turbulência e pouco mais. Os problemas desta viagem começaram in medias res e a decisão de ida para o Porto Santo, depois do pânico da tripulação, depois do terror dos passageiros, foi apenas o corolário de uma série de inaptidões que se foram revelando perigosa e progressivamente à vista de todos. Lembrei-me disto porque passam, por dia, mais de 50 navios no Canal do Suez e as tempestades de areia não se inventaram agora. 

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