terça-feira, 9 de março de 2021

The Harkles

Às vezes dou por mim a pensar que esta grande caixa de ressonância, que são as redes sociais, não faz mais do que o temido vírus. A net viraliza a ignorância, a violência, a vaidade e a soberba. Temos muito medo de um vírus que entra em nós, porque ele pode matar-nos. Temos muito medo de um vírus que, além de nos poder matar, multiplica-se e espalha-se se por acaso nos damos com outras pessoas - e o quanto precisamos nós, para viver, de nos dar com outras pessoas... Mas esquecemos que é exactamente isso que fazemos, alguns de nós pelo menos, nas redes todos os dias com a nossa verdade, a verdade que vomitamos para captar a benevolência daquela meia-dúzia de amigos cibernéticos capazes de nos dar o conforto que é ouvirem-nos, lerem-nos, declararem uma guerra cega, e surda, aos nossos inimigos. 

A Sra. Harkle vomita a sua verdade para inglês ver e os seus amigos e admiradores indignam-se. Como é possível não adularem como nós a Sra. Harkle? Os amigos e admiradores da Sra. Harkle formam uma espécie de séquito para bater. O séquito bate no suposto agressor da Sra. Harkle sem bater: comentam nas redes as indignidades a que foi sujeita a Sra. Harkle, os media apressam-se a ganhar interacções operacionalizando o cancelamento do suposto agressor da Sra. Harkle, a política aproveita e apoia os queixosos. A caixa de ressonância repercute a mesma música, o mesmo ritmo, sem parar. Ninguém põe em questão o que foi dito, ninguém se pergunta porquê isto agora, ninguém pensa no outro lado, ninguém opta por ficar quieto e ver a situação de fora. (De fora, a situação é privada - não nos inclui.)

Esta coisa de cada um ter a sua verdade e o momento de a veicular pigarreando aos quatro ventos e o local para a megafonar é recente. Não que a verdade seja absoluta, longe disso, Richard Rorty explica. Mas não é minha, tua, deles ou de quem a apanhar. As redes criam esta ilusão da verdade pessoal pelo potencial interactivo, leia-se pseudo-justiceiro, que ela tem e que é monetizável. Mas não existe uma verdade pessoal, há só pessoas tontas. Atentem no futuro dos Harkles.

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