sábado, 6 de fevereiro de 2021

Os nomes do medo

A meio da manhã faço uma pausa. Nessa pausa, respondo a e-mails. A maior parte das vezes, trata-se de pendências institucionais fáceis de resolver. Uma vez por outra, um agradecimento. Esta manhã pediram-me desculpa por um esquecimento perfeitamente normal em qualquer circunstância. Mas vivemos tempos diferentes de um tempo qualquer. A pessoa desculpou-se com o stress que o excesso de mortalidade lhe estava a acrescentar ao dia-a-dia. Eu conheço a pessoa há pouco tempo mas sei que escreveu stress, para não escrever cansaço, desânimo, impotênciamedo. Não é médico, nem enfermeiro, não se barrica no seu consultório, não recorre a televisões nem a humoristas famosos para aterrorizar as pessoas, não pede que tenham pena dele, antes pelo contrário: não se escusa em nenhuma circunstância a desempenhar a sua função. É uma pessoa à antiga: tem sentido de responsabilidade e pudor. Até no eufemismo de substituição isso se vê. Fiquei a pensar que conheço imensas pessoas com funções idênticas - a maior parte muito jovem, a maior parte meus alunos - e ainda não tinha pensado no dia-a-dia deles neste tempo. 

José Gil escreveu há dias que 

Nesse sentimento de imortalidade quotidiana, o valor da vida anula-se, desaparece. Não se dá valor à vida porque só existe vida. Mas quando o perigo de morrer surge, cada vida torna-se única e sem preço. Digamos que dois princípios regem este sentimento da precariedade da vida, pela iminência da morte. O primeiro é um princípio de igualdade: todos nós vamos morrer, a morte revela não só um destino comum, mas também a natureza de quem morre, natureza humana despojada dos valores sociais que trazia consigo, ouropéis, estatutos, riqueza, talento, virtudes e vícios. Sou apenas um ser humano, uma vida nua. A presença ubíqua da morte reforça o sentimento de igualdade que já existia, e existe sempre, mais ou menos latente, mais ou menos explícito, em todos os homens. O paradoxo desta visão da vida individual (de que falaram tantos místicos, poetas, pensadores) é que não se trata da vida biológica, mas do valor de uma vida, para além da simples existência física.

Colectivamente, temos de pensar no valor da vida para além da nossa sobrevivência, da nossa existência. Ajudava que o fizessem pais e filhos, de pequeninos. Ajudava que pais e filhos coabitassem com os avós e que a vivência da morte e da doença fosse verdadeiramente partilhada pela família. Ajudava que o fizessem as escolas, a filosofia, a história, as humanidades, a sociedade, a política. Mas, se calhar, a ajuda começa com cada um de nós, hoje. A viver com os outros. Sem medo. 

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