"O eléctrico já chegou e partiu, Ricardo Reis vai sentado nele, sozinho no banco,
pagou o seu bilhete de setenta e cinco centavos, com o tempo aprenderá a dizer, Um de
sete e meio, e volta a ler a funérea despedida, não pode convencer-se de que seja Fernando
Pessoa o destinatário dela, em verdade morto, se considerarmos a unanimidade das
notícias, mas por causa das anfibologias gramaticais e léxicas que ele abominaria, tão mal o
conheciam para assim lhe falarem ou falarem dele, aproveitaram-se da morte, estava de pés
e mãos atados, atentemos naquele lírio branco e desfolhado, como rapariga morta de febre
tifóide, naquele adjectivo gentil, meu Deus, que lembrança tão bacoca, com perdão da
vulgar palavra, quando tinha o orador ali mesmo a morte substantiva que todo o mais
deveria dispensar, em especial o resto, tudo tão pouco, e como gentil significa nobre,
cavalheiro, garboso, elegante, agradável, cortês, é o que diz o dicionário, lugar de dizer,
então a morte será dita nobre, ou cavalheira, ou garbosa, ou elegante, ou agradável, ou
cortês, qual destas terá sido a dele, se no leito cristão do Hospital de S. Luís lhe foi
permitido escolher, praza aos deuses que tenha sido agradável, com uma morte que o fosse,
só se perderia a vida."
José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis
Depois do memorial, o meu preferido.
ResponderExcluirLisboa está sempre à tua espera :-)