"Há circunstâncias em que a recusa é a única afirmação possível. Como os prisioneiros em greve de fome, presumo. Ou, menos dramaticamente, como aconteceu, em meados dos anos 50, no Café Gelo (...) Vivia-se nesse tempo em Portugal um ambiente suspenso e fechado. O fim da guerra não tinha trazido a democratização prenunciada pelos aliados e, pelo contrário, consolidara a ambiguidade pró-fascista do regime português numa militância anticomunista com eles partilhada. Tempo de expectativas frustradas. De esperança sonegada. O regime português não seria tão brutal como outros congéneres tinham sido e como outros ideologicamente antagónicos continuavam a ser. Mas, como os amores, essas coisas não são comparáveis por quem as padece. Havia vigilância policial, havia denúncias, havia torturas, havia prisões, houve execuções secretas. Houve tudo isso. E havia sobretudo uma generalizada redução de expectativas. Produzindo mais resignação do que revolta. As pessoas olhavam em volta quando falavam. Baixavam a voz para dizer o que não chegavam a dizer. Cada um era o seu próprio carcereiro.
O que todos nós, os do Café do Gelo, tínhamos em comum era uma atitude de recusa, uma partilhada vontade de quebrar amarras, um só sabermos o que não queríamos para podermos deixar um espaço livre para o que pudéssemos talvez querer. A recusa de normas estabelecidas era a nossa única norma. O questionamento de valores impostos o nosso único valor. As noites eram os nossos dias. Se vivíamos num mundo às avessas, tínhamos de viver no avesso das avessas. Estávamos todos muito zangados com o que queriam fazer de nós: o governo, as universidades, a família, as várias polícias, que não nos queriam deixar ser quem ainda não sabíamos que poderíamos querer ser, os intelectuais estabelecidos que nos queriam ensinar a ser quem não queríamos ser. (...)
Mas não é pela literatura nem pela pintura que recordo os do Gelo. É pelo que não queríamos ser onde não podíamos estar. O Manuel de Castro que se fez morrer alcoolizado com 30 e poucos anos. O José Escada que se deixou degradar por um angelismo inalcançado. O João Rodrigues que se atirou da janela por já não valer a pena não se atirar. O José Sebag que fingia suicidar-se para dessa vez não ter morrido até que um dia em que não se suicidou morreu. O José Manuel Simões que preferiu a indigência de Paris ao regresso à pátria porque era o mais puro de todos nós. Pouco antes de morrer o Simões meteu tudo o que possuía num envelope e escreveu no envelope: Sobras Completas."
- Helder Macedo, sobre Servidões de Herberto Hélder, no JL desta quinzena.
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