terça-feira, 12 de novembro de 2013

Boas descobertas

"- Depreciavam os teus esforços? Encolerizavam-se? Invocavam alguma forma de autoridade? O direito divino? 
- Mostravam-me o meu próprio reflexo no tanque e depois agitavam a água com uma vara de vedor, inventavam cadeias de nomes aliterativos que me soavam a impropérios, citavam-me fora do contexto com uma desfaçatez que se tornou lendária, escondiam um cadáver de pássaro sob o meu travesseiro. Perdoei-lhes a todos, perdoei-lhes com eloquência, deliberadamente, com as mãos e com a boca, com braçadas de gladíolos, em latim e vulgar, em verso, prosa e aforismo. Humilhei-os com a minha generosidade. A fama assentava-me com o aparato de uma dama da corte. Que belo! Que belo! Quando chegava o São João estava tudo esquecido, e quando se vindimavam as vinhas eu passava já por submissa. Cobriam-me os olhos com uma tira de gaze, era sempre eu a cabra-cega. Sobrava tecido que chegaria para rodear o pomar, enchia os caminhos de branco e empecilhava-me os movimentos. Apelos roucos e longínquos à calma e à temperança chegavam-nos como um trava-línguas rimado. Gostava de maçarocas, mas não de sardões; de camarinhas, mas não de azedas; dos tordos, mas não dos mochos; do ocaso, mas não do nascente." 

 - Alexandre Andrade, "Notícias do Segundo Círculo", As Não-Metamorfoses.

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