quinta-feira, 14 de maio de 2020

Gott ist in den Details

Quem, como eu, dedicar os momentos de lazer ao crime, na fonte literária ou na adaptação televisiva, sabe que o crime revela a natureza humana. Comecei este mês a rever Poirot. Poirot diz constantemente que agradece toda a oportunidade que lhe é dada para estudar a natureza humana. A natureza humana não é o que pensamos, o que nos dizemos que somos. Somos animais. Somos animais independentemente do que façamos para esquecer essa baixa condição. A persistência do crime nas nossas sociedades não surpreende mas o crime horrendo choca. Somos animais incautos e inconscientes, vive-se melhor assim. Noto que a geração dos meus pais está verdadeiramente transtornada ante as evidências diárias da maldade gratuita. A geração dos meus pais pouco conhece das novas gerações. E não leu Steiner, não sabe que o tédio mata. O que, a mim, me surpreende é a inteligência, a gentileza e a ausência de preconceito de Poirot. Só ele ouve a nota dissonante, só ele deduz e persegue aquele pormenor que a todos passou despercebido. O crime perfeito não existe. O infanticídio remonta, pelo menos, a Medeia, uma vilã incrível. A sua história mostra a loucura que é matar por expediente, matar por vingança. O desvio que esteve lá desde sempre, que se foi materializando de forma gradual, e que ninguém quis ver. Poirot investigaria o relatório que não conseguiu apurar qualquer indício de violência física na última fuga de casa. Ninguém foge de casa de um progenitor para ir para junto do outro porque tinha saudades. Ter saudades é a forma que algumas crianças arranjam de não magoar e não desenvolver, não falar. Foge-se de casa quando se tem medo e a firme certeza de que ficar é arriscar-se, é expor-se sem defesa a perigos insuportáveis. Escrever relatórios e citar Dietrich Bonhoeffer é um bocejo. O mais fácil.

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