sábado, 11 de novembro de 2017

O mistério da confluência de mundos e realidades

Iniciámos a confeção da marmelada na tarde de Setembro ainda quente. Entretém-me contando histórias do tempo em que era jovem, do que ouviu dos antepassados ou do que viveu, sabendo que me deixo arrebatar pelo mistério da confluência de mundos e realidades. Fala-me sobre almas penadas que erram pelo nosso universo e se escondem da luz do dia pelos campos agrestes, nas matas de zambujeiro, nelas permanecendo enredadas, até à hora mágica do anoitecer, altura em que se libertam e passeiam pelo mundo dos vivos, enquanto os pássaros regressam aos ninhos. Narra-me histórias de fátuas esferas de luz prateada que amedrontam os passantes na noite, acompanhando-os por longos percursos, girando à sua volta como libelinhas do além e desaparecendo inexplicavelmente, tal como aparecem. Recorda episódios sobre encontros à meia-noite, nas portas dos cemitérios, com seres enigmáticos, incorpóreos, que esperam os homens e mulheres tardios, regressando do trabalho ou da taberna, a horas que não são de gente de carne. Seres que nos visitam e se revelam, dialogando com os vivos, fingindo que o são e desvanecendo-se quando lhes convém. No tempo antigo conheceu fenómenos relacionados com o desrespeito da sexta-feira santa, porque nesse dia sagrado não se trabalha. Não se lava a roupa nem se passa a ferro nem se cozinha, sob pena de o trabalho ser manchado pelo sangue que Cristo derramou. Afiança-me que é assim. Que sempre será. Que tenho de respeitar.
Isabela Figueiredo, A Gorda.

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