sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Remoo

Digo que a minha fome desse tempo nasceu no estômago, no centro de mim, mas nunca saberei ao certo de onde veio. Comprimia-o, pontapeava-o. Era uma dor que não matava, tal como a saudade de alguém que nos morre. Engolia os alimentos depressa sem os mastigar. Sentia-lhes o delicioso paladar rápido, e o torrão sólido caía no estômago começando a enchê-lo como a um saco de batatas, tubérculo a tubérculo. O monstro da fome é um grande amigo quando está saciado. Sinto-me consolada. Se não, vai-me espetando no estômago o seu ferrão, para que não me esqueça. Não esqueço. Acalma-te, fome, eis as tuas oferendas! Pão com marmelada. Pão com manteiga. Pão com chouriço. Teria preferido sentir fome nos pulmões para saciá-los com grandes golfadas de ar. Ou no coração, para correr e acelerar a pulsação. Calhou-me o monstro multicéfalo da fome no interior do estômago, ligado ao cérebro. É como se tivesse cogumelos a crescer no interior escuro e húmido do meu corpo. Esporos de fome semeados pela criação. Se tivesse sido logo o que vim cá ser, viveria em paz com o monstro e dormiria com ele, como com um cão. Medito. Remoo. Maldigo. Eu ainda não sou o que vim cá ser. E o que é isso que me espera?
Isabela Figueiredo, A Gorda.

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